Quando eu era criança, na casa da minha avó, tinha um quadro que era assombrado. Era uma ancestral distante, ou parenta antiga, que tocava harpa durante a noite. Na verdade, o quadro escondia um encanamento ou tubo de ventilação, não sei bem, que estralava com a dilatação durante a noite. Os estralos abafados se confundiam com um toque de harpa desengonçado. Não é que nós não soubéssemos. Todo mundo sabia o que causava os ruídos, mas isso não impedia o folclore da família de perpetuar a ideia da trisavó, ou seja, lá o que era, saindo do quadro e tocando a harpa que ficava na sala de visitas. Aliás, a harpa que morava na sala nunca tinha sido dela, e ela provavelmente nem sabia tocar. Mas nada disso impedia o folclore de proliferar. E os quadros assombrados não eram exclusividade da minha família. Cada casa tinha o seu. Nem sempre era um cano velho, mas eles sempre estavam lá, seja seguindo com os olhos quem passava, ou projetando sombras durante a noite.
Também quando nós, pequenos, coçávamos os olhos de sono, sempre tinha uma avó ou tia para afirmar: é o João Pestana que jogou um grãozinho de areia nos seus olhos para dizer que é hora de dormir. E claro sabíamos que não havia nenhum João Pestana, mas ainda assim procurávamos avidamente por ele.
Mas meus preferidos eram os sacis. Tinha vários. Quintal grande, com muita terra, dava pra ver redemoinhos sempre. Mesmo fora da casa, na cidade, tínhamos muitos sacis. Eles batiam as janelas, derrubavam as roupas do varal, atrapalhavam nossas brincadeiras. Eram mesmo uns malandros. Nunca tentamos pegar os sacis. Não eram sacis de monteiro lobato que nos obedeciam se roubássemos o gorro ou que pudéssemos prender em uma garrafa com uma cruz feita de carvão na rolha. Eu até fiz isso uma vez, mas todo mundo riu de mim: os nossos sacis não eram sacis de livro. Eles só brincavam no quintal, e faziam as travessuras deles, dentro de seus rodamoinhos.
Até hoje os rodamoinhos me impressionam. Quando teve um tornado aqui em Brasília, uns anos atrás, que destruiu vários carros no estacionamento do aeroporto, eu via de longe e imaginava o tamanho do saci que pilotava aquilo ali.
Algumas lendas mais antigas não tinham lugar na cidade grande, é verdade. A falta de um rio ou mar não deixava lugar pras sereias e botos. E a falta dos fogos fátuos nos cemitérios modernos nos tirava as mulas sem cabeça. Mas o folclore não se dá por rogado e cria suas novas lendas. Nosso cemitério do Bonfim ganhou uma loira, que fazia o papel sedutor da sereia e assombrava nosso cemitério. Já o nosso boto veio bem mais tarde, quando já era adolescente, na forma de um capeta que seduzia as mulheres nas quadras de forró ou funk da avenida Vilarinho. Não podia tirar o chapéu, não por causa do furo na cabeça, mas dos chifres, que apareceriam.
Esse mundo misto de fantasia e realidade ajudava a gente a entender o mundo. Sabíamos bem o que era lenda e o que era realidade, mas as lendas nos traziam um conforto extra praquilo que ainda não conhecíamos por completo. Era bom ter um saci pra “culpar” pela bagunça no quintal. Arrumávamos aquilo com mais gosto e vontade. Como dizem os hispanofônicos:
Yo no credo en brujas, pero que las hay, hay!
Mas o mundo cresceu muito rápido. As lendas que antes cabiam não cabem mais, e as loiras do Bonfim e capetas da Vilarinho não conseguem suplantar a velocidade da internet. Eu ainda vejo bruxas e sacis por aí, mas acho que sou dos poucos. A maioria nem repara na existência deles, e somente ri quando reparo. Mesmo as crianças, não tem um saci na internet ou um João Pestana que saia da TV. (Talvez uma Samara, dizendo que temos 7 dias? só se for por WhatsApp, porque “áudio? deus me livre!”). Não sei se essa falta de bruxas e sacis é que abre o caminho para acreditarmos em outras lendas, que ao invés de nos acalmar dentro de um mundo inexplicável, nos aterrorizam e nos fazem temer a verdade. Cada um tem a sua: de cloroquina a 5g, de GMO a vacinas, sempre temos uma bruxa à solta no nosso WhatsApp. Precisamos de novos sacis pra arrumarem (ou bagunçarem?) a casa e tomar o lugar dessas outras bruxas, mais assustadoras e daninhas, do mundo moderno!