Nós não somos ocidentais.

A primeira vez que eu me deparei com esse problema foi em 83, na França, quando minha mãe, durante o doutorado, precisou preencher um formulário da universidade que perguntava “origem cultural”, ou algo assim. Ela marcou “ocidental”. O orientador dela reclamou:
– Você não é ocidental!
– Não? ela perguntou espantada. Mas então o que eu marco?
E as opções eram africano, árabe, próximo-asiático ou oriental. Não conseguiram descobrir o que ela era, deixaram em branco. Descobrimos o que nós éramos 10 anos mais tarde, no canadá, onde os formulários sempre tinham a opção: latino! (Alguns bem explícitos, “latino, mesmo que branco”). Não, definitivamente não éramos ocidentais, mas agora pelo menos éramos alguma coisa.

The-Good-the-Bad-and-the-Ugly[amazonify]B0052REUW0:right[/amazonify]Daí em diante, sempre me deparo com esse problema. Outro dia foi um blog cético qualquer que falava sobre o oriente médio citando um [amazonify]B0052REUW0::text::::livro do Pinker[/amazonify] sobre a violencia: “o pinker mostra como nós passamos por um processo civilizatório que resultou em maiores direitos humanos”, e pombas, o pinker não fala de nós. Ele falava explicitamente: EUA e Europa Ocidental. E aí eu percebo que o blogueiro cometeu o mesmo erro da minha mãe e preencheu no seu formulário mental: “etnia: ocidental”. Não, o pinker não falou da gente, nós não passamos pelo processo civilizatório que ele cita, nós não somos ocidentais.

Tem horas que eu mesmo me confundo. Por mais que eu saiba que não sou ocidental, essa idéia nos permeia tanto que, se não prestarmos atenção, a gente se agarra nela. Quando estava grávido do Tomás, fui ler o [amazonify]B000FC1KBG::text::::livro da encantadora de bebês[/amazonify]. E pombas, que mulher “caga regras”. Me revoltava a forma como ela tratava os bebês e os pais. E aí num belo momento ela me fala que numa casa onde ela trabalhou estava tudo errado: o bebê só acalmava no colo. E era tudo por causa de uma babá guatemalteca que sempre mantinha o bebê no colo, já que, no país dela, os bebês ficam sempre no colo e não no berço como deveria ser.

Nossa! Larguei o livro xingando: QUE MULHER XENÓFOBA RACISTA DO CARALHO! Que diabos, ela quer impor a cultura dela, desprezando a cultura da coitada da babá guatemalteca, que, se bobear, nunca tinha visto um berço antes de ir pros EUA. Bufei por uns bons minutos até parar pra pensar de novo: Pombas, porque eu tou puto? Ela nem desprezou a cultura da outra, só constatou como era! Mas então porque me pareceu que ela estava “cagando regras”? E aí cai a ficha de novo: Porque o livro dela não é pra mim! EU NÃO SOU OCIDENTAL! Ela não está cagando regras, ela está ensinando os pais a tratarem os bebês como se faz na cultura dela, na cultura ocidental! Ela não “caga a regra” de que criança não pode ir no colo, essa É a regra na cultura dela. Assim como criança ficar no colo é a regra na NOSSA cultura, mais parecida com a da babá guatemalteca do que da dela!

Aí chego no ponto atual, no meu ultimo conflito com a cultura ocidental: o texto que circulou no facebook traduzido como “A derrota do feminismo no Facebook“. Quando li, fiquei revoltado. POMBAS, que mulher “caga regras”, maldita preconceituosa! Culpando as coitadas das mães, que já não sofrem pouca pressão da sociedade, só porque cederam um pouquinho da sua personalidade em nome de serem mães, no maior estilo “blame the victim”. Me deu ódio, me meti em discussões acirradas sobre feminismo ser sobre dar poder pra essas mães se encontrarem fora dos estereótipos, e não culpá-las e estereotipá-las desse jeito.

Aí, discutindo com o Bruno ainda sobre o assunto, uma frase dele me deixou com a pulga trás da orelha: “Mas a minha avó, por exemplo, DEPENDE dos filhos pra tudo.” Pombas, se a avó dele, e as mulheres da geração das nossas mães em geral, é que se encaixam nesse estereótipo, porque diabos a Katie Roiphe me diz no texto que “Não posso deixar de pensar que nossos pais jamais teriam suportado tênis que apitam ou conversas que giram inteiramente em torno de crianças.” Não encaixava, como assim nossos pais jamais teriam suportado, se são exatamente nossas mães que mais se comportam assim?

Mas é claro! É porque NÓS NÃO SOMOS OCIDENTAIS! Esse texto não era pra mim, não era pra nós. A Katie Roiphe não está cagando regras, nem mesmo culpando as vítimas. Ela está constatando uma mudança cultural que, na opinião dela é negativa, e está apontando os agentes da mudança: as mães que trocam suas fotos no facebook pela dos filhos! Enquanto pra nós, latinos, postar essa foto é um reflexo da opressão do passado, pra ela, ocidental, é uma novidade, uma escolha de caminho futuro, um retrocesso! Não era pra eu ter raiva do texto porque o texto não foi escrito pra mim. Eu não sou ocidental!

5 thoughts on “Nós não somos ocidentais.

  1. Hum… does isso também quer dizer que boa parte do mimimi feminista ocidental não faz sentido nenhum aqui no Brasil? Ou que de alguma forma, é um objetivo feminista brasileiro fazer com que ninguém segure filho no colo, e que expulsemos os moleques de casa quando fizerem 18 anos (isto é, ‘ocidental’ == ‘melhor’)?

    1. Bom, acho que o que isso quer dizer é que sempre que você for emitir qualquer julgamento nesse sentido, você tem de levar em conta se o que você está criticando é algo relevante na sua cultura ou não. No caso, qualquer regra social que inferiorize a mulher é ruim, mas a forma como você lida com ela depende da cultura. Por exemplo, para uma francesa faz sentido criminalizar a burqa, para uma feminista árabe não faz, por num caso você está impedindo uma pressão cultural externa opressora de entrar no país e no outro você está criminalizando a vítima, já que a pressão cultural já existe e está arraigada. Em ambos os casos, a burqa é ruim, mas a forma como você trata isso e luta contra isso vai depender da cultura.

      1. “Em ambos os casos, a burqa é ruim”? Ela é tanto ‘símbolo de opressão’ quanto saia, minissaia e biquini, digo, roupas ‘de mulher’. Isso também não depende da cultura? (ps: continuo discutindo aqui, ou no oldreader?)

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