História surreal

Ou do mendigo que catava lixo e falava francês, inglês, espanhol e se dizia índio Pataxó…

Putz, aconteceu logo agora uma coisa altamente surreal! Não sei se tou impressionado ou apenas rindo da situação…

A estória começa com o tradicional e religioso passeio com o cachorro, que hoje por motivos que só Deus sabe, começou mais tarde[1]. Passei ali pela comercial da 208[2] e tinha um mendigo fuçando naquelas lixeiras grandonas (igual se vê em filme de roliude) que ficam na esquina das comerciais. Ele pegava os pães velhos e jogava pras pombas, e alguma coisa que ele encarava ele guardava numa caixa de papelão que ele tava carregando. Quer dizer, isso foi dedução minha do que vi de relance em alguns microsegundos. Meu “condicionamento de classe-média brasileira” me faz ignorar as cenas desse tipo em poucos microsegundos,então não dá muito pra ter certeza do que vi.

Passei direto, atravessei e continuei andando.

Só que lá na frente eu cruzei com um vendedor de picolé, desses de carrinho de “isopor” que vende picolé feito com agua de torneira e gordura hidrogenada, mas que são bons pra daná e dão caganeira! Pois é… Cruzei com um vendedor desses e resolvi comprar um picolé de leite condensado[3]. Nessa, a Lilica que tava solta saiu pra “explorar” o gramado na frente do prédio que eu tava passando.

Aí, de repente não mais que de repente, surge do nada (ou melhor, sai da zona de consciência do “condicionamento de classe-média brasileira”) o tal mendigo que falei antes. E pergunta:

  • É misturado com yorkshire?

No que eu percebo um ligeiro sotaque, de início achei que era hispanofônico. Eu respondo:

  • Não, é um West Terrier! (Sim, quando o “encanto” do “condicionamento de classe-média brasileira” é quebrado eu me torno bastante amigável com as pessoas invisíveis).

E a conversa envereda para a raça do cachorro:

  • A raça vem da inglaterra?
  • Não, é escocesa…
  • Você conhece a escócia? Conhece Glasgow?
  • Não, nunca fui lá não, na verdade só a raça dela é que é escocesa, ela é nascida no Brasil mesmo…
  • Sabe que língua fala na escócia?

A essas alturas já tinha sacado que o cara “não era qualquer um”. Alguma coisa sobre a escócia ele sabia! Então resolvi botar as manguinhas de fora:

  • Bom, eles falam inglês e gaélico!
  • Gaélico? Oh, você abrasileirou gaelic, em inglês se diz gaelic. Você sabe inglês?

E emendando logo na seqüência:

  • Do you speak English?

No que a conversa começou a ser feita em inglês! (Nada estranho pra mim, a coisa já estava surreal quando ele mostrou o que conhecia da escócia…) Onde eu tinha aprendido meu inglês? Em Nova Iorque, e também no Canadá. Canadá? Você fala francês? E enveredou agora pro francês como língua! Impressionatemente ele não tinha sotaque no francês! Apesar de ser um sotaque mais do sul da frança (sem as vogais abertas, por isso não identifiquei o local exato) dava pra perceber que ou ele era MUITO bom (o inglês dele era excelente) ou falava francês nativamente.

Além do que, ele mostrou que sabia bastante sobre a geografia da França! Strasbourg, Lille, Marseille, regiões em torno de paris. De vez em quando trocávamos a língua, de acordo com o assunto, mas o francês acabava sempre sendo o “idioma oficial”, a Língua Franca da nossa comunicação. Conhecia até o argot, que é a “giria” francesa[4], e tentou falar comigo em argot, mas eu não tinha as habilidades necessárias pra tanto.

Por fim, acho que tentou me impressionar ou assustar, soltou a última deixa:

  • Eu sou índio Pataxó, de uma tribo de sergipe. Meu cacique era aquele que vocês queimaram aqui em 1996, num ponto de ônibus.

Imaginei que fosse mentira, porque ele não falou o nome do cacique! Todo mundo sabe que ele se chamava “Galdino”. Mas deixei continuar[5]:

  • E como você aprendeu tantas línguas?
  • Você sabe que Sergipe é o segundo estado com maior produção de petróleo no Brasil, né? Pois eu trabalhava como mergulhador numa plataforma de petróleo, e muitos dos engenheiros e técnicos eram franceses, ingleses, americanos e suecos. Eu aprendia a língua deles pra me comunicar.

E ainda lançou:

  • E agora quem são os gringos? Vocês que chegaram aqui com Cabral ou nós cujos antepassados estão aqui a séculos antes dessa baboseira toda?

Não sei se ele percebeu que eu estava desconfiando da estória dele, se ele tinha mesmo de ir embora, se ele resolveu se livrar de mim porque eu já tinha perdido a graça, mas o diálogo durou mais uns poucos minutos e logo ele se despediu:

  • Tchau, e desculpe pela aparência!

Fiquei encucado? Claro! O cara tinha barba, não podia ser índio! Era um senhor de uns 50 a 60 anos, branco mas com a pele corada pelo sol, 1,70m. A barba dele se parecia bastante com a do meu pai. Alias, meu pai quando vivo poderia se passar por um mendigo se quisesse. Sempre de chinelo de dedo, camisa de botão meio aberta, mostrando a barriga, calça de pano já velha e surrada. Pode ser um Hippie velho, ou um comunista, ou um mendigo por ideologia, quem sabe? Que resolveu “testar” um jovem que ele encontrou na rua, se passando por mendigo. Ou que se diverte impressionando as pessoas. Achei até interessante ele me lembrar meu pai 🙂

Quando a situação surreal terminou, não sabia muito o que pensar! Alias, ainda não sei o que pensar! Devo concluir alguma coisa? Considerar como mais uma cena pitoresca do cerrado candango? Devo acreditar ou fingir acreditar que era um índio? um louco? um mendigo por opção? Um Hippie velho e sujo?

Ou é só uma estória pra eu registrar, e contar pros netos quando e se eu os tiver?

Não sei. Acho que nunca vou saber!

Notas

  1. ^ i.e. eu dormi demais…
  2. ^ Pra quem não conhece Brasília, endereço aqui é ao contrário. Você descobre a Rua pelo número e o prédio pelo nome dele :P!
  3. ^ Alias, a Kibom lançou agora um picolé de leite condensado que só não é tão bom quanto esses de marca vagabunda porque é mais caro (R$1,00 contra R$0,80 do vagabundo) e menor.
  4. ^ Na verdade os franceses são tão formais que eles tem uma gíria “padrão” que esse argot! Mais como se fosse um dialeto do que gíria mesmo!
  5. ^ N.T. o diálogo a seguir se deu em francês e não está totalmente fiel a realidade por falta de memória fotográfica da minha parte, mas o contexto e o sentido foram mantidos na medida em que minha memória não me pregou peças.

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